14 de dezembro de 2024
Uma a cada quatro mães é vítima de violência obstétrica em Goiás

Paula Fernanda, advogada, diz que demorou a compreender que foi vítima de violência obstétrica (Foto: Wesley Costa/O Popular)

Levantamento aponta que, em 2021, cerca de 37 mil mulheres de um total de mais de 148 mil partos receberam atendimento agressivo, mas falta de conhecimento e medo inibem denúncias...

“Deitei e o médico veio com uma tesoura fazer episiotomia. Minha doula disse que eu não queria. Ele retirou as luvas, disse que não ia fazer meu parto”.

“Enfermeiras me seguraram pelas pernas e braços e fizeram a Manobra de Kristeller. Gritei e a enfermeira tapou a minha boca. O médico mandou fazer força e não gritar”.

“Enfermeira pediu para parar de gritar porque estava atrapalhando os outros leitos”.

Estes são relatos de vítimas de violência obstétrica em Goiás. A cada quatro mães, pelo menos uma passa por situações similares, segundo a Fundação Perseu Abramo. Isso significa que, em 2021, em Goiás podem ter sido 37 mil mulheres de um total de mais de 148 mil partos. As denúncias, entretanto, são tímidas. Este ano, nove mulheres formalizaram casos de violência obstétrica na Defensoria Pública de Goiás. Entre as possíveis causas, medo e falta de conhecimento. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reconhece que a conduta ser enquadrada como crime, ainda que não haja tipificação específica.

Cindy Anne Ferreira, de 31 anos, é professora de Biologia e viu o sonho de um parto normal se transformar em pesadelo. A ideia era um parto pelo Sistema único de Saúde (SUS). Moradora do interior, se programou para um parto em Morrinhos, mas as contrações começaram em uma sexta-feira à noite e não havia médicos disponíveis no final de semana. A recomendação foi vir pra capital. A professora achou que se deslocar para mais longe seria trabalhoso e decidiu ter a filha no hospital da cidade.

“Chegando lá, não deixaram meu marido me acompanhar, disseram que aceitavam acompanhantes mulheres. A gente sabia que era de direito nosso que meu marido me acompanhasse. Porém, decidimos não brigar. Foi um erro”, recorda. A mãe foi colocada em uma sala sozinha e a enfermeira foi para colocar soro. Mesmo dizendo que não queria, o soro foi adminitrado na veia e a enfermeira afirmou que, se fosse necessária uma cesárea, seria mais fácil. Por toda a madrugada, Cindy ficou sozinha, em jejum.

“Não tinha mais forças. As contratações vinham e a sensação que tinha era que eu iria desmaiar de tão fraca. Pedi para me deixarem comer alguma coisa e tirar soro, já que meu parto estava evoluído para normal. Não deixaram. Pedi para minha mãe arrumar algo para eu comer, do contrário não iria conseguir. Ela tinha três pães de queijo na bolsa e comi sem que as enfermeiras soubessem”.

A doula chegou às 10h30, trocou com a mãe e o médico rompeu a bolsa de Cindy. A professora subiu na maca e tentou ficar ajoelhada, mas foi forçada a se deitar em posição ginecológica. Nesse momento, o médico veio com uma tesoura para fazer a episiotomia e a doula disse que ela não queria. “O médico tirou as luvas e disse que não faria o parto. Logo disse que não ia precisar mais, pois já tinha lacerado. Ao mesmo tempo, as enfermeiras me seguravam pelas pernas e braços e faziam a Manobra de Kristeller. Entrei em desespero. Não sabia se fazia força pro bebê sair ou para tirar uma enfermeira de cima de mim. Lembro de pedir para ela não empurrar minha barriga, ela me segurava pra que não pudesse me defender. Pediram que eu fizesse força de boca fechada. Teve um momento que gritei e a enfermeira fechou minha boca. Eu já não tinha controle sobre meu corpo, só queria que aquilo acabasse”.

Lavagem intestinal

Gabriela Margarida, de 29 anos, é terapeuta energética e manual além de mãe de Miguel, de 5 anos, e de Flora, de 3. No parto da filha, diz que foi humilhada. “Fizeram enteroclisma (lavagem intestinal), sem me dizer que era um procedimento que eu poderia escolher fazer ou não. Uma enfermeira apareceu com um aparelho de barbear para me depilar, eu disse que não queria. Ela fez cara feia, disse que isso atrapalharia o trabalho do médico e eu disse que sabia não ser necessário. A partir daí, virei atração na maternidade. ‘Temos uma dessas Mães Naturebas’. O burburinho do corredor dava pra ouvir do quarto”.

Ela conta que pediu a placenta, para transformar em cápsulas. Apesar de não haver evidências científicas, a prática é comum, mas a placenta foi jogada no lixo. Gabriela pediu para agachar, mas não teve o direito. Teve lacerações de 2º grau que foram costuradas. “Choro muito de raiva, porque quando deitei e olhei para as luzes que ficam em cima da gente, os meus pensamentos eram ‘não tenho autonomia nenhuma aqui, acabou Gabriela, vai ser horrível, mas vai logo pra isso passar’”.

“No quarto, uma técnica de enfermagem falou que muitas mulheres pariam ali mesmo, exatamente do jeito que eu gostaria”. A técnica contou que dois obstetras da maternidade tendem a respeitar uma linha humanizada, mas que não era o caso do profissional escolhido por Gabriela. “Parir com plantonista ainda é uma roleta-russa”, diz a terapeuta. Ela indica às gestantes ter uma doula treinada para ajudar e criar um círculo de segurança e ter um plano de parto. “Junto com sua doula você vai escrever todas as suas preferências, condições e quais procedimentos você autoriza ou não da parte da equipe da maternidade. Desejo que as intervenções sejam realizadas quando realmente necessárias, em gestações de alto risco ou sobre o total consentimento das mães que não desejam atravessar um parto vaginal. Que toda mulher seja protagonista dos seus partos. Não romantizamos o parto vaginal para todos os nascimentos, mas sabemos que a OMS indica que as cesárias sejam 15% dos partos, enquanto nossos profissionais brasileiros estão fazendo 70% deles”.

Só entendi depois

A advogada Paula Fernanda de Godoi, de 30 anos, é mãe de três filhos e conta que foi vítima de violência nos dois primeiros partos, mas só entendeu isso tempos depois. “Eu só fui entender durante um mestrado, em que fiz um projeto de extensão com palestras sobre direitos das mulheres e aí entendi a violência que havia sofrido. Meu primeiro parto foi normal, às pressas porque o médico estava atrasado para o almoço e deixou restos de placenta no útero. No segundo parto, a médica estourou a bolsa com 37 semanas, porque achou que estava febril, mas depois falou: ‘Nem precisava’. Aí induziram o parto e foi terrível”.

Durante um parto, ela conta que o anestesista subiu em cima dela para forçar o nascimento. Após o procedimento, com dor, o médico disse que era manha até que ela sentiu febre. Nos exames, descobriram restos de placenta que exigiram uma curetagem. O último parto foi tranquilo, com doula, sem violência. “Fui respeitada, tive controle sobre meu corpo”. A caçula, entretanto, teve bronquilite e reação à medicação, o que ocasionou uma paralisia cerebral. Hoje, Paula é integrante da Associação de Acolhimento à Pessoa com Paralisia Cerebral (APC-GO).

Falta de dados claros inviabiliza políticas públicas, diz advogada

Valéria Eunice Mori, de 34 anos, é advogada atuante na área dos direitos do ciclo gravídico puerperal e afirma que a ausência de dados e números é um complicador na formulação de políticas públicas. Recentemente o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou protocolos de julgamentos com perspectiva de gênero em que reconhece a Violência Obstétrica, mas sem dados. Para ela, falta fiscalização e controle, dessa forma, não é possível modificar a situação das vítimas.

“Nós temos a lei 10.778/2003, que obriga os estabelecimentos de saúde a efetuar notificação compulsória de situações ocorridas dentro de estabelecimentos de saúde. Essa é uma violência de gênero, só a mulher pode sofrer e isso acontece quando ela está em estado de extrema vulnerabilidade. Ocorre que os profissionais não notificam, como é feito em outros casos, como violência sexual e doméstica. Isso configura infração sanitária, e, em caso de servidores públicos, ato de improbidade, por descumprir dever de ofício”, completa.

Para a advogada, o cenário em questão afeta o controle do Sistema Único de Saúde (SUS), tornando mais complexa uma formulação de políticas públicas que poderiam amenizar o “agravo de saúde pública”.

Mori é professora e atua diretamente com advogados e profissionais de saúde de todo o país. Ela afirma que as práticas mais comuns de violência obstétrica são as que de alguma forma objetificam a mulher, restrinja direitos ou que ofenda, de forma física, verbal, moral e psicológica as mulheres gestantes, em trabalho de parto, em estado puerperal ou em situação de abortamento, que abrange o período de luto gestacional e perinatal.

Para formalizar uma denúncia é necessário que a vítima tenha uma cópia do prontuário. Apesar de o documento ficar sob a guarda da unidade de saúde, os hospitais são obrigados a entregar uma cópia e não é necessário explicar o motivo do pedido.

“É um direito. É preciso buscar um advogado na área ou a defensoria pública. É importante ter orientação de um advogado ou defensor para ter mais clareza sobre seus direitos. Pode denunciar na ouvidoria do hospital, na ouvidoria do SUS ou do plano de saúde; em conselho profissional; vigilância sanitária se for infração sanitária ou ainda em uma delegacia, caso configure crime”.

Diretor do Cremego questiona uso do termo

Ginecologista, obstetra e diretor científico do Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás (Cremego), Waldemar Naves do Amaral afirma que o termo violência obstétrica ainda não é reconhecido por toda a classe médica e defende que a autonomia da mulher precisa ter como limite a experiência do profissional de saúde. O diretor do Conselho defende que, até mesmo a chamada Manobra de Kristeller – em que o útero da mulher é pressionado para auxiliar na expulsão – banida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e contraindicada pelo Ministério da Saúde (MS), pode ser necessária em alguns casos.

“Há uns dez anos começaram a usar o termo Violência Obstétrica. Médicos não reconhecem esse termo. É como se o médico fosse violento. Há centenas de anos os médicos fazem partos com o princípio da ética. A Manobra de Kristeller: existe uma crítica absoluta sobre ela, mas tem momentos em que é interessante. Não pra todo mundo, mas para a exceção. Se precisar, essa decisão tem que ser do médico. A mulher está sangrando, vai morrer e não quer alguma coisa. Ela achar que pode dar ordem – ‘Não quero ocitocina, não quero Kristeller’ – é tipo viajar de avião dando ordem pro piloto. Médicos têm vivência, formação de seis anos, residência de três, estudo, às vezes 20 anos de parto”.

O médico explica que, em alguns casos, se a episiotomia – que é um corte entre o ânus e a vagina – não for realizada, a mulher pode ter lacerações no ânus e no intestino. Pontualmente é justificada pela dificuldade do bebê em sair ou pela necessidade de um parto mais rápido em caso de sofrimento fetal. Por décadas, entretanto, foi usada como procedimento em quase todos os partos normais, mas pode trazer consequências como incontinência urinária, incontinência fecal, dor durante relações sexuais, infecção, além de resultados estéticos insatisfatórios. Atualmente, OMS e MS contraindicam o uso rotineiro.

Sociedade de Obstetrícia defende protagonismo da mulher

A Sociedade Goiana de Ginecologia e Obstetrícia (SGGO) tem uma visão mais questionadora sobre os procedimentos antes considerados de rotina, hoje percebidos e classificados como Violência Obstétrica. A categoria tem, então, se reunido para uma educação continuada que permita identificar os limites da autonomia médica e da integridade da mulher. O desafio, segundo a sociedade, é começar as mudanças por quem está saindo da faculdade e entrando nos programas de residência médica.

Obstetra e diretor de defesa profissional da SGGO, Rodrigo Zaiden afirma que desde que o termo começou a ser discutido foi necessário começar a questionar e rever práticas que eram comuns durante os partos. “Podemos ter cometidos equívocos, mas a história está aí para nos ajudar a aprender e crescer. O protagonismo do parto é da mulher e essa é a visão da maioria dos obstetras. Fizemos e reproduzimos procedimentos durante anos, de forma automática até. Às vezes, para nós, é só mais um parto e, claro, não é por má fé, é porque fazemos tantos que nem sempre parávamos para pensar que a mulher está ali em um momento único, com medo, às vezes, pela primeira vez ou talvez pela única vez tendo um filho”.

Zaiden diz que o médico precisa avaliar riscos de morte ou sequelas para mãe e bebê, mas que deve respeitar os desejos da mãe se isso não estiver em pauta. “O médico tem o direito de escolher não fazer partos normais, por exemplo, mas não tem o direito de criar diagnósticos para que a paciente vá a uma cesariana por conveniência. É preciso ser claro e dar à mulher a oportunidade de buscar alguém que atenda seus anseios. Isso não significa, claro, que não haverá uma intervenção se for necessária, mas há aqui uma diferença. A Manobra de Kristeller foi usada durante muito tempo. Hoje não é indicada. A ocitocina deve ser usada para corrigir contrações ineficazes, não de forma padrão a todas as mulheres”, explica.

Goiânia sedia semana de sensibilização sobre o tema

Começou no sábado (27), a Semana de Erradicação da Violência Obstétrica, realizada em Goiânia de forma inédita com programação on-line e presencial. O evento, que é organizado por um grupo de mães e associações em defesa das mulheres, tem como objetivo discutir o cenário e trazer informações importantes sobre direitos e desafios. No domingo (28), teve uma parada, com encontro no parque Vaca Brava, no Setor Bueno. No próximo sábado (4), o lançamento do livro Diário dos Sonhos – Uma narrativa sobre parto, puerpério e mergulho interior, de autoria de Flor de Luz. A programação completa está disponível no Instagram @mulherquepariu.

Flor de Luz, de 32 anos, é doula e educadora perinatal. Junto com Gabriela Margarida e Mirela da Mata decidiram organizar a semana de atenção. “A ideia surgiu na sensação de impotência que sinto acompanhando mulheres em trabalho de parto que sofrem todo tipo de violência bbstétrica nos hospitais de Goiás”. Mãe de duas crianças, de 4 anos e de 1 ano e 9 meses, ela afirma que teve dois partos domiciliares assistidos por equipe humanizada com enfermeiros obstétricos e doula. Ainda que não tenha sido vítima, decidiu ajudar outras mulheres a fazer escolhas conscientes e também entender o que é caracterizado como violência.

Ela afirma que existem relatos de violência em praticamente todas as unidades de saúde. “Uma coisa que acontece muito é um tratamento humanizado para quem chega com plano de parto e/ou doula e atendimento com violência para quem chega sem”. A doula defende que é inevitável não falar de parto domiciliar porque ele não sofre a violência sistêmica, mas que a humanização pode ocorrer, inclusive, em cesarianas. “A cesariana sem motivação de saúde pode ser considerada mutilação feminina. A Organização Mundial de Saúde a classifica como cirurgia de grande porte. Existe a humanização da cesariana, mas há centros cirúrgicos que amarram a mulher, proíbem acompanhantes. Garantir os direitos da mulher durante esta cirurgia salvadora de vidas é um processo respeitoso ”, diz Flor de Luz.

Perguntas para | Tatiana Bronzato

O que pode ser caracterizado como violência obstétrica?

De acordo com a OMS, são abusos verbais, restringir a presença de acompanhante, procedimentos médicos não consentidos, violação de privacidade, recusa em administrar analgésicos, violência física, entre outros. Mulheres solteiras, adolescentes, de baixo poder aquisitivo, migrantes e negras são as mais propensas a sofrerem abusos.

A episiotomia, por exemplo, é um corte na região do períneo para aumentar a passagem do bebê. Em alguns casos, há indicação clínica. Todavia, se aplicado indiscriminadamente ou sem indicação clínica, configura uma violência. A episiotomia nos partos via vaginal no Brasil é de 53,5%, e a recomendação da OMS é não ultrapassar a 10%, o que demonstra que o procedimento vem sendo realizado indiscriminadamente. Outro exemplo é a utilização indiscriminada de cesárea. Claro que se as condições clínicas sugerirem, por alguma intercorrência, o procedimento será adequado. O que configura a violência é o agendamento sem que se garanta à mulher o direito à informação e consentimento de qualidade.

A ausência de analgesia é outra prática, infelizmente comum.

Existe um prazo máximo após o parto para a busca dos direitos?

Para os casos de eventual crime, deve-se atentar-se aos prazos prescricionais, especificados na lei penal. Caso se cuide de demandas cíveis e indenizatórias, o prazo para intentar uma ação de reparação de danos é de três anos.

Flor de Luz, de 32 anos, é doula e educadora perinatal
(Foto: Wildes Barbosa/O Popular)

Fonte: O Popular
Foto: Wesley Costa/O Popular
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