Em 29 de setembro de 1988, um voo da Vasp que decolou de Porto Velho, capital de Rondônia, e fez escalas em Cuiabá e Brasília, pousou no Aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, última parada antes de seu destino, o Rio de Janeiro. Em Minas, embarcou no Boeing 737-300 o passageiro Raimundo Nonato Alves da Conceição, de 28 anos. Ele entrou armado numa época em que sequer havia detectores de metais nos aeroportos brasileiros. Desempregado e desesperado, tomou o controle da aeronave logo após a decolagem e deu a ordem para que o piloto, o comandante Fernando Murilo, desviasse a rota e rumasse para a capital federal. “Tenho um acerto com o Sarney”, teria dito o sequestrador.
Começava ali um dos episódios mais inacreditáveis da aviação brasileira e que teve seu desfecho trágico na pista do Aeroporto Santa Genoveva, em Goiânia. A história acaba de ser contada no longa-metragem O Sequestro do Voo 375, que estreia em 7 de dezembro. Com direção de Marcus Baldini, que esteve à frente de trabalhos de projeção, como a cinebiografia de Bruna Surfistinha, a trama revive os momentos de tensão que viveram os 98 passageiros e os seis tripulantes a bordo, uma vez que a intenção de Raimundo Nonato era jogar o Boeing sobre o Palácio do Planalto, num atentado contra o então presidente da República, José Sarney. O País vivia uma grave crise econômica, com inflação nas alturas. No filme, Raimundo Nato é interpretado pelo ator Jorge da Paz e o piloto por Danilo Grangheia.
Antes de conseguir dominar a tripulação, Raimundo Nonato deu vários tiros na porta da cabine. Um dos projéteis atravessou a proteção, feriu um piloto reserva que estava lá dentro e danificou aparelhos. Obrigados a abrir a porta, o comandante e seu copiloto, Salvador Evangelista, foram ameaçados com a arma. Houve uma tentativa de pousar no Aeroporto de Brasília, mas a autorização foi negada. Naquele momento, o piloto fez manobras sobre a Praça dos Três Poderes, acionando a Força Aérea. Aviões de caça Mirage decolaram da Base Aérea de Anápolis. Nesse momento, o piloto avisou que o combustível estava acabando e que a alternativa era pousar em Goiânia, mas o sequestrador não queria.
Em entrevistas que concedeu posteriormente, o comandante Murilo contou que fez algumas manobras arriscadas com o jumbo para desnortear o sequestrador. Em algum momento antes do pouso, Raimundo Nonato deu um tiro, que acertou a cabeça do copiloto Salvador Evangelista, que não resistiu ao ferimento. Inicialmente cogitou-se que Evangelista tivesse tentado desarmar o sequestrador, mas, posteriormente, o próprio comandante Murilo, em entrevista ao jornal Estado de Minas, afirmou que o desempregado teria se assustado quando o copiloto pegou o rádio da aeronave para responder a uma chamada da torre de controle de Brasília. Ele acreditou que Salvador estivesse pegando uma arma e atirou.
Quando pousou em Goiânia, já havia um morto e dois feridos da tripulação dentro do Boeing. Começava uma longa negociação, que durou toda a tarde daquele dia. O corpo do copiloto foi jogado na pista e a Polícia Federal entrou no caso para tentar libertar os reféns. Após muitas ameaças de Raimundo Nonato, que jurava que mataria passageiros, um avião Bandeirante, da Força Aérea, estacionou próximo do jumbo, no Aeroporto Santa Genoveva. O comandante Murilo servia de escudo para a fuga, mas na hora que ambos estavam prestes a embarcar, um atirador de elite conseguiu alvejar Raimundo, que caiu. Ele ainda conseguiu atirar em Murilo, ferindo-o na perna, mas recebeu mais dois tiros e foi dominado.
Raimundo foi encaminhado para o Hospital Santa Genoveva, ferido na perna, nas nádegas e na região lombar, perto do rim direito. Inicialmente foi informado que seu estado de saúde era estável, mas cinco dias depois ele morreu. Duas autópsias foram realizadas e os laudos da época apontaram que a causa da morte foi anemia falciforme, algo que não tinha ligação direta com os tiros que ele levou. Mas essa versão é cercada de dúvidas, uma vez que a Polícia Federal manteve o sequestrador isolado. Muitas teorias surgiram em torno de sua morte, que passaram até por um suposto envenenamento no hospital, mas nada foi comprovado. O filme resgata, assim, um caso que as novas gerações não conheciam.
Cobertura dramática e difícil
“Tudo começou com a informação das manobras radicais sobre Brasília. E, quando o avião veio para Goiânia, a chefia de reportagem me acionou aqui”, recorda o jornalista Luiz Spada, que hoje é editor-assistente do caderno Magazine, do POPULAR, e que em 1988 também atuava como correspondente do jornal O Globo em Goiânia. “Nós fomos para o aeroporto, mas só podíamos ficar no terminal de passageiros e o avião ficou estacionado na cabeceira da pista que dá para o Jardim Guanabara. Era muito longe. Mas eu consegui encontrar a sala de onde eles falavam com o avião e negociavam com o sequestrador. Eu ouvi muito daquelas conversas”, afirma. “Teve um momento em que o piloto avisou que o calor dentro da aeronave era insuportável, que havia acabado água e comida também.”
Enquanto isso, dois repórteres fotográficos do POPULAR tentavam se aproximar da aeronave, já cercada por agentes federais e até membros da Aeronáutica. Hélio Nunes, ex-editor de fotografia do jornal, e Yosikasu Maeda, se posicionaram, já na pista, e captaram aqueles que foram os melhores flagrantes da operação. As imagens do corpo do copiloto Salvador Evangelista sendo retirado do Boeing, assim como dos momentos logo após o tiroteio que pôs fim ao sequestro, correram o Brasil e o mundo. “Meu pai lembrava que algumas de suas fotos foram publicadas na revista Veja”, informa Guilherme Nunes, filho de Hélio, que faleceu em 2010. Maeda também já morreu, em 2020. É bom lembrar que era um tempo sem internet e mesmo transmissões de TV longas eram difíceis.
Na edição de 30 de setembro de 1988, O popular publicou um depoimento de Maeda sobre o que ocorrera no Aeroporto Santa Genoveva na véspera. Ele relatou que o momento no qual mais se aproximou da cerca de arame farpado da pista onde estava o Boeing foi quando o avião Bandeirante exigido pelo sequestrador taxiou e parou ao lado da aeronave sequestrada. Ele presenciou de perto o tiroteio entre Raimundo Nonato e agentes da Polícia Federal e flagrou o exato instante em que o sequestrador foi dominado no chão da pista, com um fuzil apontado em suas costas. Ao perceber o flagrante, os policiais conduziram Maeda para uma sala do aeroporto e confiscaram seu material, posteriormente liberado.
“Foi muito ruim, uma tensão muito grande. O momento em que eles tiraram o copiloto que havia sido morto de dentro do avião foi muito triste. Tiraram pela escada do avião e depois o corpo caiu na pista. Muito triste aquilo”, define João Nogueira, que era cinegrafista da TV Anhanguera. Ele captou estas imagens dramáticas e as cerca de seis horas de negociação na pista do Aeroporto Santa Genoveva. “O piloto Fernando Murilo foi o responsável por não ter havido uma tragédia maior. No ar, nas manobras, e também em terra, na negociação, ele mostrava muita tranquilidade. Não chamava o Raimundo de bandido, mas sim de sujeito, indivíduo”, revela Spada. “Minha cabeça estava a mil. Eu tinha acabado de sair da cobertura do Césio e veio aquele episódio. Foi tudo muito rápido.”
Por Rogério Borges
Foto: Governo de Goiás
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