Médica quilombola formada em Jataí inicia carreira no Hospital São Pedro, em Goiás

A médica quilombola formada em Jataí no Hospital São Pedro, Lígia Fonseca Ferreira, 27 anos, iniciou sua trajetória profissional na unidade bicentenária da cidade de Goiás. O momento é histórico: além de marcar um reencontro com suas origens familiares, simboliza a resistência quilombola e a quebra de barreiras sociais no acesso à saúde.
Do quilombo ao jaleco branco
O Hospital São Pedro D’Alcântara marcou profundamente a vida da família de Lígia. Ela nasceu na unidade e, além disso, acompanhou a trajetória da avó, dona Ione — mulher negra periférica, parteira e benzedeira — que trabalhou por mais de 20 anos nos serviços gerais, no único emprego formal de sua vida.
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Remanescente do Quilombo Alto Santana, certificado pela Fundação Cultural Palmares em 2017, Lígia considera sua chegada ao hospital como médica um momento de grande significado.
Desafios na formação
Formada em Medicina pela Universidade Federal de Jataí (UFJ), Lígia enfrentou inúmeros obstáculos até concluir o curso. Durante a graduação, trabalhou como garçonete e também vendeu pinturas de sua autoria para se sustentar. Além disso, contou com o auxílio do Programa Bolsa Permanência e com o apoio da família, que nunca deixou de acreditar em seu sonho.
A voz da conquista
Em uma publicação em suas redes sociais, a médica ressaltou que a conquista vai muito além de um diploma: “Esse momento não é só sobre me tornar médica. Já banalizei várias vezes durante o curso a relevância da graduação, mas me dei conta de que esse momento é de luta. No ano em que ingressei, houve um aumento de 690% dos pretos e pardos no curso, e mesmo assim foram apenas 27% do total de ingressos em universidades públicas nesse brasilsão. (…) Estamos aqui e nos formando, ocupando um lugar predominantemente branco e elitista, graças a políticas públicas que tentam reparar o histórico escravocrata do país.”
Ela aproveitou ainda para agradecer aos professores do CEPI, aos pais, aos amigos e à avó Ione, sua maior inspiração.
Herança da avó
Dona Ione, falecida em 2018, deixou marcas de luta e resistência. Ela fugiu de uma condição análoga à escravidão no meio rural e, em seguida, se estabeleceu na cidade de Goiás, onde trabalhou por décadas no hospital. Nesse período, também se tornou uma referência no Quilombo Alto Santana.
Entre as memórias, Lígia lembra episódios de preconceito que marcaram a trajetória da avó. Em um deles, dona Ione tentou acalmar um bebê recém-nascido no hospital, mas o pai da criança a impediu apenas por ela ser negra.
Quebra da pobreza geracional
A conquista de Lígia foi celebrada por autoridades locais. Para Elenízia da Mata, secretária de Igualdade e Equidade Étnico-Racial da cidade de Goiás, a médica simboliza a quebra da pobreza geracional. “A corrida é desigual e injusta, mas histórias como essa mostram a força da resistência”, afirmou.
A Associação de Saúde São Pedro D’Alcântara (Aspag), mantenedora do hospital, também comemorou a chegada da nova profissional. “Os filhos de Goiás estão se formando, voltando e dando continuidade ao espírito do São Pedro”, destacou a presidente, Marlene Velasco.
Um futuro de esperança
Atualmente, Lígia se dedica integralmente ao hospital. No dia a dia, aprende com colegas e pacientes e, portanto, sente que cada experiência reforça seu propósito. Ao lado da coordenadora do Pronto Socorro, Gabriella Mangucci Godinho, 28, também de origem humilde, ela demonstra que histórias de superação podem transformar o presente e inspirar o futuro.

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