21 de novembro de 2024

“O que comer pós-treino para emagrecer”, “suplemento para emagrecer rápido”, “remédios emagrecer sem receita” e “batata doce ajuda a emagrecer” são os termos relativos a emagrecimento com maior aumento recente nas buscas feitas pelos brasileiros, segundo o Google.

Parte dessas formulações reflete um problema que a nutricionista Desire Coelho, doutora em Ciências pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), chama de terceirização da responsabilização do processo de emagrecimento. Ela diz que as pessoas buscam “atalhos” para emagrecer.

“A pessoa não necessariamente quer emagrecer, mas parece muitas vezes que eles querem ser emagrecidos, quase com uma varinha de condão”, diz a autora de Por que não consigo emagrecer? Um olhar sobre corpo, comportamento e alimentação (Ed. Fontanar, 2022).

A nutricionista alerta que “saúde e emagrecimento podem estar aliados, mas dependendo de como é feito o processo de emagrecimento, ele pode ser até motivo de doença”.

Ela afirma que problemas na relação com corpo têm suas raízes na “valorização exagerada da magreza” e na percepção — errada — de que magreza e saúde são sinônimos.

Nesse contexto, a valorização da magreza intensa — e os consequentes elogios feitos quando alguém perde peso — ajuda a explicar por que as pessoas demoram a identificar que amigos ou familiares têm transtornos alimentares.

“Na dúvida, é melhor não falar sobre o corpo do outro, porque você não sabe a história daquela pessoa”, diz Coelho, que é especialista em transtornos alimentares.

O que dificulta o processo de emagrecimento — e quais são os pilares que realmente podem ajudar nesse processo?

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Desire Coelho ao portal, editada por concisão e clareza.

BBC News Brasil — Neste momento, os termos relativos a emagrecimento com maior aumento de pesquisas no Google são: “o que comer pós-treino para emagrecer, “suplemento para emagrecer rápido”, “remédios emagrecer sem receita” e “batata doce ajuda a emagrecer” são os que tiveram maior aumento recentemente. Com sua experiência na clínica e na academia, o que essas buscas indicam sobre as formas que buscamos para emagrecer?

Desire Coelho — Ressoa sempre que deve existir um atalho. Qual é o atalho que eu preciso para conseguir emagrecer? Muitas vezes, algumas dessas perguntas nem são um atalho, são uma pílula mágica.

A pessoa não necessariamente quer emagrecer, mas parece muitas vezes que eles querem ser emagrecidos, quase com uma varinha de condão. Não querem necessariamente passar pelo processo de mudança. Querem que alguma coisa aconteça e aí entendam qual é o grande culpado, o grande vilão, e o que eles têm que fazer que eles não estavam fazendo antes e, a partir daí, mudar a história de vida, a trajetória, e não se preocupar mais com isso. Vejo muito uma terceirização da culpa das pessoas, uma terceirização até da responsabilização do processo de emagrecimento.

E sempre procurando uma pílula mágica, o que vai ser a guinada, o que vai ser essa coisa que vai dar a mudança e o resultado com essas pessoas esperam. E isso acontece muito por uma expectativa irrealista do que é o processo de emagrecimento mesmo, o que é saúde. Então hoje em dia quando as pessoas pensam em nutrição, pensam direto em emagrecimento, e não necessariamente em performance, não necessariamente em saúde. Então saúde e emagrecimento podem estar aliados, mas dependendo de como é feito o processo de emagrecimento, ele pode ser até motivo de doença.

Isso não é culpa do indivíduo necessariamente. É de todo um meio que a gente está envolvido, em que a valorização da magreza é exagerada e existe muito uma percepção de que saúde é igual à magreza — o que também não é verdadeiro.

BBC News Brasil — No livro Por que não consigo emagrecer?, você fala sobre as barreiras que atrapalham esse processo. Quais são as principais?

Desire Coelho — Primeiro que as pessoas entendem o processo de emagrecimento como uma coisa que tem começo, meio e fim — e ele não tem começo, meio e fim. Mais do que a pessoa pensar qual o corpo que quer ter, o peso que quer ter — eu não gosto de falar em peso, mas é muito o referencial que as pessoas têm —, as pessoas têm que pensar qual é o estilo de vida que querem.

Aí, sim, a gente vai conseguir entender dentro dos valores dela, da realidade dela, aonde ela consegue chegar. E outra coisa importante é que as pessoas entendem o processo de emagrecimento como uma coisa linear — e não é. O processo de emagrecimento tem altos e baixos, e a questão é o quanto a pessoa consegue aprender com esses momentos — o que funciona para ela, o que não funciona. As pessoas querem muito uma única fórmula mágica, mas não vai existir — o motivo pelo qual uma pessoa engorda é diferente do motivo pelo qual outra pessoa engorda.

Se somos pessoas tão diferentes, não vai existir uma única resposta para o processo de emagrecimento. Então é entender (a resposta) dentro da realidade de cada pessoa – genética, fatores sociais, história de vida e os valores diferentes que a comida tem para cada um de nós.

Entender esse processo de emagrecimento como altos e baixos e quanto a pessoa conseguir retomar o processo, continuar no processo, é o que vai determinar muito do sucesso dela no longo prazo.

BBC News Brasil — Você mencionou como a história de vida de uma pessoa pode impactar o significado da comida para ela. Pode dar um exemplo?

Desire Coelho — Atendi uma paciente que tinha engordado muito, começou a ter episódios de compulsão alimentar com doce. Conversamos sobre histórico de vida e ela falou que foi numa nutricionista e, na época, e ela comia sempre um bombom depois do almoço. A nutricionista falou: “não, o açúcar não faz bem, vamos tirar esse bombom, não é para comer mais”. Aí ela ficava todo dia tentando não comer.

Depois de uma semana sem comer nada de doce, ela se pegou comprando uma caixa de bombom e comendo inteira. E aí ela começou a desenvolver episódios de compulsão alimentar, porque ela entendia que o que ela estava fazendo era errado e aquilo gerava uma série de reações, mas tudo por conta de uma restrição imposta por uma pessoa.

Então uma pessoa que nunca teve esse tipo de viés, uma pessoa que nunca teve esse tipo de interação, tem uma relação com doce totalmente diferente.

Entender a história de vida e como isso interfere nas nossas relações com a comida e com o nosso corpo é muito importante.

BBC News Brasil — Além dos fatores que dependem do indivíduo, quais são aqueles essenciais para todo mundo?

Desire Coelho — Tem alguns alicerces:

O sono, que as pessoas estão cada vez mais conscientes, mas elas ainda não têm ideia do quanto ele impacta diretamente na nossa capacidade de escolher comida, por exemplo. Dormir bem — quantidade e qualidade é fundamental. Não existe emagrecimento sustentável com sono ruim. A privação de sono aumenta a fome, diminui saciedade e aumenta a vontade de comer. Além disso, deixa a gente mais indisposto, e a gente se movimenta menos, então a gente fica mais sedentário. É um combo muito perigoso.

A atividade física. Podemos pensar na atividade física e no exercício — tem o treino estruturado, mas atividade física são os movimentos que a gente faz no nosso dia. O que acontece é que algumas pessoas, por mais que tenham carga de treino adequada, no resto do dia tem comportamento completamente sedentário. O que acontece é que um acaba compensando o outro. Isso é algo que a ciência ainda está tentando entender. Então, às vezes a pessoa aumenta o gasto dela na atividade física, só que o comportamento sedentário faz com que aquele aumento não seja pronunciado como poderia ser. (…) As pessoas têm respostas metabólicas diferentes e isso é determinado geneticamente até — a facilidade ou dificuldade (de poupar ou gastar energia).

O terceiro pilar é a alimentação. Tem algumas coisas que a gente já sabe que são fundamentais para alimentação: deve ser muito rica em alimentos in natura — ou seja, salada, legumes, comer. A gente tá falando de arroz, feijão, grão de bico, lentilha. É aquela história de “descasque mais e desembale menos”. E a gente respeitar nossos sinais de fome, de saciedade, entender quais são os alimentos desafiadores. E as proteínas têm um papel fundamental. São coisas que a gente já sabe.

E o último pilar fundamental é a parte da regulação emocional. Hoje em dia, o que as pessoas mais usam para fazer a regulação emocional não é sair para caminhar ou chorar. As pessoas comem. Às vezes, a pessoa sente algo que não quer sentir, aí come para aliviar. Entender quais são as válvulas de escape que cada pessoa usa e como a gente consegue ressignificar essas válvulas de escape é fundamental também em um processo de saúde e emagrecimento.

BBC News Brasil — Uma prática que se popularizou foi o jejum intermitente. Funciona?

Desire Coelho — O jejum intermitente, assim como outras dietas, funciona para uma parcela da população. Vai ter gente que vai falar “nossa, eu já fazia jejum intermitente e nem sabia que tinha esse nome”, porque a pessoa muitas vezes janta não muito tarde, não toma café porque não tem fome, e aí ela vai comer na hora do almoço, e aí ela ficou aí umas 14, 16 horas em jejum.

O que é interessante do jejum é que, quando a gente pensa no aspecto evolutivo, faz muito sentido. Se a gente pensar nos nossos antepassados que viveram 100 mil anos atrás, 200 mil anos atrás, eles não faziam cinco refeições por dia todos os dias. Era normal ter uma oscilação. E hoje estamos numa sociedade em que não é incomum eu encontrar paciente que faz sete refeições por dia. Metabolicamente, o corpo da pessoa não para de processar comida, é um desgaste.

Uma coisa que a ciência tem mostrado que é interessante é, mais do que ficar pensando em estratégia de jejum intermitente, pensar no jejum da noite, que as pessoas não estão fazendo direito. Tem que dar pelo menos uma janela de 11, 12 horas que você não se alimenta. Isso não se caracteriza como jejum intermitente, que seria uma janela a partir de 14, 16 horas. É só o jejum noturno — se a minha última refeição foi 19h, vou comer 7h da manhã.

BBC News Brasil – As pessoas parecem cada vez estar falando mais em tomar proteína, vitaminas, suplementos… Quanto isso é a ciência avançando e trazendo soluções interessantes e quanto tem a ver com essa busca de uma solução mágica, como você citou?

Desire Coelho — Meio a meio. Tem muito uma indústria sempre na frente da ciência, já querendo vender a necessidade de consumo. E a grande questão é que ilude muito as pessoas porque existe um fundo científico que faz sentido, mas não daquele jeito que está sendo propagado.

Por exemplo, falando do ômega 3: a gente sabe que pessoas que têm uma alimentação mais rica em peixes e em alimentos fontes de ômega 3, como castanhas, sementes, são pessoas que têm o perfil cardiometabólico melhor, mas elas comem mais na alimentação. A evidência sobre a suplementação de ômega 3, que é o nutriente isolado, ainda é fraca. Para algumas coisas, ela já existe.

No Brasil, a gente entende que é um nutriente que muitas vezes está deficiente mesmo na alimentação das pessoas. Aí fica a pergunta: o melhor jeito é suplementar ou tentar aumentar os alimentos fontes, né? Obviamente seria aumentar os alimentos fontes, porque quando a gente fala da matriz alimentar do alimento em si, ele não tem só ômega 3, ele tem vários outros compostos que provavelmente são benéficos também.

BBC News Brasil — E a proteína?

Desire Coelho — Ela é muito importante. E quando a gente vai ver a população em geral, tem alguns fatores são fundamentais. Quem quer consumir proteína é quem não precisa de proteína, que são os jovens, abaixo de 35, 40 anos, que adoram tomar um shake de proteína. Mas via de regra do corpo deles está ótimo para sintetizar proteína.

Quem precisa de proteína são as pessoas com 40 anos ou mais, que precisariam suplementar proteína porque o corpo começa a ficar resistente ao ganho de massa muscular e começa a perder massa muscular.

Então elas precisam ser ativas e consumir proteínas. E também podemos discutir se o melhor modo é através de bebidas proteicas, cheias de aditivos, como adoçantes, emulsificantes. Os suplementos são uma saída, mas tem que se encontrar o jeito certo de fazer isso.

BBC News Brasil – Também temos visto aumentar o uso de medicamentos contra a obesidade…

Desire Coelho – Meu referencial é sempre querer repelir essas coisas de primeira, porque já houve vários medicamentos que foram ruins, só trouxeram resultados desastrosos, não cumprem o que prometem, com vários efeitos colaterais.

Mas a verdade é que esse medicamentos novos, os análogos de GLP-1, são muito interessantes, muito bons. Mas está havendo uma banalização do uso, como pessoas que querem perder três quilinhos utilizando isso, e ele tem muitos efeitos colaterais.

É uma ciência muito nova, mas a capacidade que eles têm de resultado é algo que não tem nada parecido. Mas esses medicamentos novos não vão ser bala de prata — se as pessoas não mudam os contextos, o estilo de vida, quando a pessoa tira (o medicamento), a remissão é grande também.

BBC News Brasil – A sua experiência é grande tanto na área de esportes quanto de transtornos alimentares. Nem sempre conectamos essas coisas. Quão ligadas elas estão?

Desire Coelho – Totalmente conectadas. A área esportiva, dependendo inclusive das modalidades, têm os maiores índices de transtornos alimentares. A gente pensa sempre em esporte como saúde, mas quando a gente pensa em saúde, hoje em dia, não é só isso.

O esporte hoje é visto muito com uma coisa de fundo estético — como vou conseguir tal barriga, tal o braço —, e outra coisa é que, quando a gente pensa em alto rendimento, existem muitas outras questões relativas a corpo: manter um determinado peso corporal, uma determinada forma corporal, tem que conseguir chegar nesse corpo nesse peso para aquela competição…

BBC News Brasil — Falando em esporte amador, tenho a impressão de que as mulheres, décadas atrás, faziam esporte amador com foco na estética. Não era difundida a ideia, por exemplo, de fazer uma natação para ajudar também na saúde mental, correr para tirar um tempo para você. Até hoje, a gente ainda busca atividade física como uma forma de emagrecer ou entendemos que é muito mais do que isso?

Desire Coelho – Homem entende como bem-estar. Homem sempre teve atividade física muito embutida na história de crescimento dele. O menino está jogando futebol com os amigos, jogando basquete com os amigos, e a menina está brincando de boneca, de casinha.

Quando a gente vai para adolescência, os meninos estão novamente se matando lá numa quadra de esporte e as meninas assistindo todas arrumadinhas. Isso vai reverberando em diferentes fases da vida e uma grande briga que eu tenho e que eu falo para as mulheres: por que você só marca de tomar café? Por que não marca com sua amiga de fazer caminhada, pedalar, jogar um vôlei? Caminha e depois vai tomar um café.

BBC News Brasil — Sobre os distúrbios alimentares, como a pessoa pode identificar que chegou em um ponto preocupante ou como podemos identificar que alguém próximo chegou nesse lugar?

Desire Coelho — O problema dos distúrbios e dos comportamentos transtornados é que muitos deles são valorizados pela nossa sociedade. Então é difícil para a família perceber o quanto está indo de uma preocupação com saúde e passando por um aspecto mais doentio. É uma linha muito tênue.

Muitas vezes essa pessoa começa falando “Ah, eu vou cortar açúcar e farinha branca”. E a resposta é: “que legal, está cuidando da saúde”. Depois o que acontece, muitas vezes, dependendo do tipo de restrição que ela faz, ela começa a perder peso. E as pessoas elogiam. Acabam motivando a continuar nesse processo. E a pessoa começa a querer cortar mais e mais e mais e mais.

O que acontece é que a família ou as pessoas próximas só vão perceber esse adoecimento quando essa pessoa começa a ficar magra demais, só que muitas vezes já tá no aspecto totalmente doentio.

Então quando você percebe que a pessoa só fala de comida, só pensa em atividade física, em gasto calórico, que grande parte da vida da pessoa é voltada para esse assunto, já tem uma coisa muito errada aí.

A menos que seja um nutricionista, que trabalha com comida o dia inteiro — e mesmo assim é importante dizer que nutricionista é um fator de risco, muitas pessoas com transtorno alimentar procuram a faculdade para tentar entender melhor a sua doença, o que é muito perigoso.

Tem um monte de profissional que lida com corpo e emagrecimento que tem transtorno. E se essa pessoa não faz um bom trabalho interno, de autocuidado, de autorreflexão, ela vai passando esse tipo de regra para todo mundo.

As pessoas conseguem perceber que a pessoa só fala disso, são pessoas que de repente param de comer — sempre dão um motivo para não comer, então você não vê essa pessoa se relacionando com a comida. Tem alguns perdendo peso de maneira contínua, muitas vezes passam até a usar roupa larga para as pessoas não perceberem quão magra ela está.

Se você tiver proximidade com essa pessoa, é bom propor uma conversa. É muito valorizada a magreza intensa hoje em dia, mas magreza não é sinônimo de saúde.

Uma perda de peso nem sempre é conseguida por meios saudáveis. E a pessoa é muito elogiada quando ela perde peso. Por isso que, na dúvida, é melhor não falar sobre o corpo do outro, porque você não sabe a história daquela pessoa

Por Laís Alegretti
Foto: GETTY IMAGES
Jornalismo Portal Panorama
panorama.not.br

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