Imagina de uma hora para outra olhar para uma fotografia e não lembrar de um parente. A cabeleireira Sônia Marta Rocha Marinho, de 54 anos, passou por essa situação angustiante após ficar 45 dias internada em tratamento da Covid-19. Ela teve brancos na memória durante quatro dias e esqueceu o nome do neto. Além disso, ela também não se recordava que passou mal durante o tratamento e que foi preciso ser intubada duas vezes. “Eu ainda tenho alguns esquecimentos e não me recordo de muita coisa”, comenta.
A falha de memória é uma das sequelas mais comuns identificadas por médicos em pacientes que desenvolveram a forma mais grave da doença e chegaram a ficar internados, mas não é a única complicação pós-recuperação. Mais de 300 estudos realizados em todo o mundo descobriram uma prevalência de anormalidades neurológicas em pessoas com a Covid-19, incluindo sintomas leves, como dores de cabeça, alterações sensoriais e perda de olfato, até problemas mais graves, como derrames, convulsões e incapacidade de falar.
“Pacientes curados podem desenvolver problemas neurológicos, como paralisia da metade do corpo, dificuldade para andar, dor do tipo choque nas pernas e nos braços associada a formigamentos e até o desenvolvimento de crises convulsivas recorrentes”, comenta o neurologista Rodrigo de Souza Castro. Outra hipótese que não pode ser descartada, segundo o especialista, é que o novo coronavírus pode ser um gatilho para mecanismos de longo prazo que aumentam a incidência de transtornos neurodegenerativos nos próximos anos.
A doença pode afetar o cérebro de duas maneiras, de acordo com os estudos. A primeira tem início numa resposta imunológica anormal chamada de tempestade de citocinas – que provoca uma inflamação conhecida como encefalite autoimune e que traz sérios problemas à saúde, como alterações de humor. A outra seria produzida por uma infecção diretamente na cabeça, a encefalite viral. “À medida que o coronavírus foi acometendo um maior número de pessoas, novas inflamações neurológicas foram sendo reveladas”, ressalta Rodrigo.
Além da pequena falha de memória, a cabeleireira Sônia Marta apresentou quadro de perda de força nos membros superiores e inferiores, o que pode ter uma ligação com o cérebro. Aos poucos, ela vem recuperando os movimentos completos dos braços, mas das pernas ainda não. “Fiquei sem movimento nenhum no corpo depois que saí do hospital e hoje consigo me alimentar sozinha, mas preciso de ajuda para andar porque não tenho equilíbrio e os meus pés incham muito”, conta ela, que iniciou tratamento com neurologista.
Sinais
O que vem chamando a atenção no vírus é que houve episódios de alterações no sistema nervoso central antes mesmo de febre ou problemas respiratórios, que são prognósticos clássicos da Covid-19. “É possível que pacientes tenham manifestações neurológicas sem apresentar os outros sinais mais frequentemente relatados, como febre, tosse e dificuldade de respirar”, confirma Rodrigo Castro. O especialista afirma que é preciso ficar atento a sintomas como tontura, perda da consciência, crises convulsivas, entre outros.
Quem também confirma essa possibilidade de contágio sem sinais de febre é o neurologista Marco Túlio Pedatella. Segundo ele, isso pode ocorrer principalmente em pessoas com sintomas mais leves, pois é muito comum a perda do paladar nesses casos. “Há pacientes, e eu posso me colocar nesse grupo, que tem apenas perda do olfato sem outra manifestação clínica na infecção. Temos visto nas emergências casos com acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico sem nenhum sintoma respiratório que testam positivo para o vírus”, reforça.
Para o especialista, a Covid-19 pode aumentar o risco de derrames em adultos mais jovens, que não pertencem ao grupo de risco. “Admite-se que a doença pode causar o problema por dois fatores, seja pela lesão própria do mesmo na parede do vaso ou no coração, ou pela resposta inflamatória do organismo, levando à predisposição na formação de coágulos”, ressalta Marco Túlio. Estudo na revista Jama Neurology, da Associação Médica Americana, mostrou que as chances de sofrer um AVC são oito vezes maiores em infectados pelo vírus.
Pistas para os problemas
À medida que a pandemia avança, cientistas seguem em busca de pistas que os ajudem a entender como o novo coronavírus age no organismo e principalmente como consegue chegar ao sistema neural. Uma série de sintomas relacionados ao cérebro tem sido registrada em um grande número de pacientes com Covid-19 e a perda do olfato e dores de cabeça foram os primeiros sinais que deram indícios que pacientes podem ter alterações neurológicas.
“Outros sintomas neurológicos menos comuns corroboraram para esse entendimento, como pacientes que tiveram crises convulsivas e alterações cerebrovasculares, como AVC e tromboses”, afirma o neurorradiologista Ricardo Daher. Um artigo publicado na revista Annals of Neurology, da Associação Americana de Neurologia, em junho, reforçou essa ideia ao indicar que 40% dos infectados desenvolveram sinais, que vão desde a perda de olfato a tonturas.
Para o especialista, é mais comum que os pacientes com Covid-19 apresentem como problemas neurológicos apenas perda do olfato e dores de cabeça sem sinais de alerta. “Para esse tipo de grupo, não se justifica uma atenção neurológica especializada, desde que os sinais clínicos se mantenham estáveis. No entanto, em casos de pessoas que apresentarem sintomas graves, é preciso procurar atendimento médico especializado urgentemente”, lembra Ricardo.
Oxigenação
A porta de entrada do novo coronavírus é o sistema respiratório, principalmente os pulmões, onde a doença causa uma lesão direta nas células responsáveis pela captação do oxigênio para o organismo. “Isso cria uma resposta inflamatória pela ativação do sistema imune para tentar combater o vírus. Na maioria dos infectados, as lesões pulmonares são discretas e a respostas inflamatórias também, sendo que essas pessoas se apresentam com quadro gripal leve, febre, tosse, dor de cabeça, e muitas vezes até mesmo assintomáticos”, afirma o cardiologista Fábio de Paula Turco.
O especialista explica que, quando a resposta inflamatória é mais intensa, ela causa lesões pulmonares graves e dificuldade de oxigenação, o que afeta também diretamente o sistema neurológico, segundo estudos científicos. “Isso pode causar lesões em vários locais do corpo”, confirma Fábio Turco. O problema ainda leva à liberação de substâncias que causam a dilatação dos vasos sanguíneos em todo o corpo, o que por consequência ajuda na queda da pressão arterial. No tratamento, são usados medicamentos à base de corticoides para controlar a inflamação que se espalhou e anticoagulantes para prevenção e controle na formação de trombos.
Sem descuidar da cabeça
O cérebro é normalmente protegido de doenças infecciosas pelo que é conhecido como barreira hematoencefálica — um revestimento de células especializadas dentro dos capilares que atravessam a massa cinzenta e a medula espinhal. Se a Covid-19 consegue penetrar essa barreira, o vírus pode sim danificar o sistema nervoso central, como também permanecer na região com o potencial de retornar anos depois. Por isso, assim como vem fazendo a cabeleireira Sônia Marta Rocha Marinho, é crucial o acompanhamento médico após a recuperação.
“Existem relatos de casos de pacientes que, após a cura da Covid, desenvolveram a Síndrome de Guillain Barré (uma inflamação grave nos nervos). Essas alterações de nervos periféricos podem persistir mais tempo nessas pessoas que tiveram infecções graves ou com maior período de internação. Mesmo depois da alta hospitalar, é importante manter o acompanhamento com neurologista para observação constante do quadro, avaliando se ocorre progressão ou melhora de problemas cerebrais”, alerta o médico Marco Túlio Pedatella.
Especialistas afirmam que é bastante importante o diagnóstico inicial de complicações cerebrais para evitar sequelas mesmo após a total recuperação pela doença. Os exames vão desde a análise do líquor, conhecido também como líquido cefalorraquiano (LCR) e que faz o mapeamento de doenças que atuam no sistema nervoso central, à eletroencefalografia, eletroneuromiografia e até biópsia cerebral. “O tratamento deverá ser guiado conforme a complicação neurológica apresentada pelo paciente”, destaca o médico Rodrigo Castro.
Segundo o neurologista, a Academia Brasileira de Neurologia está desenvolvendo um projeto entre os membros a fim de identificar o impacto do vírus no sistema nervoso central em um grupo de pacientes com Covid-19, para que no futuro se possa ter respostas para o possível aumento de problemas neurológicos crônicos, assim como foi descoberto com a gripe espanhola. De acordo com estudos britânicos, houve efeitos colaterais duradouros semelhantes aos descobertos naqueles que se recuperaram da doença em 1918.
Enquanto algumas vacinas já estão em fases avançadas de testes e com previsão apenas para 2021, a melhor prevenção contra o novo coronavírus segue sendo o distanciamento social, a utilização de máscaras e a constante higienização das mãos, com água e sabão ou álcool em gel. “Outras medidas preventivas a serem implementadas para prevenir futuras complicações deverão ser utilizadas conforme o quadro clínico e consequentemente a fase da doença em que o paciente se encontra”, reforça o neurologista Rodrigo Castro.
Fonte: O Popular
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