26 de dezembro de 2024
Modalidade representa 67,51% dos nascimentos. Recomendação da OMS é de entre 10% e 15%. Infraestrutura, formação dos médicos e desinformação explicam cenário.

Goiás é o segundo estado brasileiro com a maior proporção de cesarianas em detrimento de partos normais. De acordo com dados do Ministério da Saúde, elas representam 67,51% dos partos realizados no estado. Goiás perde apenas para Rondônia (68,02%). A média brasileira é de 57,01%. A recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é de que a taxa de partos cesáreos fique entre 10% e 15%. Especialistas apontam que uma série de fatores, como infraestrutura das maternidades, formação dos médicos e desinformação das gestantes, explicam proporção elevada da via de parto.

O membro da Comissão Nacional Especializada em Assistência ao Abortamento, Parto e Puerpério da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Ricardo Porto Tedesco, diz que a alta proporção de cesáreas no Brasil é histórica (veja quadro) e que o País se destaca internacionalmente nesse sentido. “Só perde para a República Dominicana, que tem 12 milhões de habitantes. Isso quer dizer que em números absolutos, como temos uma população grande e uma incidência grande de cesáreas, talvez o Brasil seja o país onde mais se nasce por cesárea.”

O especialista alerta que uma cesárea sem indicação se associa a riscos de complicações anestésicas, infecciosas, hemorrágicas, além de lesões em órgãos adjacentes e possíveis complicações em futuras gestações. “Existe uma incidência maior da necessidade de se retirar o útero durante uma cesárea ocorrida após muitas cesáreas e uma chance maior de uma complicação chamada de placenta prévia, que é quando a placenta fica muito baixa dentro do útero e pode ser difícil de ser retirada, além de gerar a ocorrência de sangramentos graves.”

Ao mesmo tempo, Tedesco enfatiza a importância da cesárea em casos com indicação. “Ela salva vidas e reduz a mortalidade. Tem situações em que é imprescindível a realização da cesárea”, frisa. No entanto, ele explica que a literatura médica demonstra que o aumento expressivo das cesáreas não é acompanhado do aumento da melhoria das condições de assistência materna e pré-natal. “Aumentar a cesárea até determinado ponto, traz benefício. Protege a mãe e o feto. A partir de determinado ponto, você aumenta as cesáreas sem trazer benefícios. Pelo contrário, traz riscos.”

O diretor técnico da Maternidade Nascer Cidadão, Rogério Cândido Rocha, acredita que se criou uma “cultura” de cesarianas em Goiás, sendo que os profissionais têm parte da responsabilidade pelo cenário atual. “A verdade é que o parto normal dá muito mais trabalho. Geralmente, ele leva mais tempo e tem de ser acompanhado de perto. Muitas vezes, por questão de comodidade do profissional, eles (obstetras) desencorajam a paciente de fazer o parto normal no pré-natal”, afirma.

Rocha destaca que a estrutura da unidades de saúde como hospitais e maternidades, que têm mais salas cirúrgicas em detrimento de salas de partos, influencia na formação dos profissionais, que acabam ficando mais bem treinados nesse tipo de parto, e no aumento da proporção dos procedimentos cesáreos. Ele conta ainda que, em Goiás, percebe uma forte cultura de pacientes que só querem ter o parto com o obstetra que acompanhou o pré-natal. “Caso seja um parto normal, isso requer um profissional disponível 24 horas por dia. Muitos médicos deixam (de fazer cesarianas) porque não têm essa disponibilidade.”

Violência

O diretor técnico da maternidade goianiense considera que outra circunstância que tem influência na alta proporção de cesáreas, é o fato de a obstetrícia ser a especialidade médica mais processada. “Ao menor sinal de perigo, o médico resolve fazer a cesárea”, pontua. Sobre a violência obstétrica, ele aponta que é importante comunicar as mudanças ocorridas nos nascimentos dos bebês. “Tenho 18 anos de profissão. Me formei em 2006 e, naquela época, o médico era o ator principal do parto. A episiotomia (incisão efetuada na região do períneo para ampliar o canal de parto), por exemplo, era rotina. Com o tempo, isso foi mudando. Hoje, o atendimento é centrado na paciente. Gosto de chamar de parto adequado. A palavra é chave respeito à gestante.”

Para evitar esses episódios, ele reforça a importância da mulher ter acesso a informação ainda durante o pré-natal. “Percebemos que muitas não têm conhecimento do processo (do parto normal). Isso é ruim, porque quando elas têm conhecimento, elas conseguem perceber qualquer situação que ocorra fora do padrão. Nesse sentido, a própria paciente age como um limitador das violências”, esclarece.

Rocha assinala, por exemplo, a possibilidade de existência de um plano de parto. “É um documento no qual ela (gestante) vai descrever que quer o acompanhante presente em todas as etapas, que não gostaria de ter a barriga apertada, cortes feitos na vagina ou então a bolsa rompida de forma desnecessária. Ela pode detalhar também que quer ter contato com o bebê logo após o parto, cortar o cordão umbilical, dentre outros. A gestante assina esse papel e entrega para a unidade de saúde.”

Soluções

O diretor técnico da maternidade goianiense acredita que para mudar o cenário atual da alta proporção de cesarianas em Goiás, é preciso investimento. “Criar estruturas físicas próprias para o parto normal e remunerar obstetras, plantonistas exclusivos e qualificados, para desempenharem essas funções. Não dá para deixar um médico recém-formado com esse tipo de responsabilidade”, aponta.

O membro da Comissão Nacional Especializada em Assistência ao Abortamento, Parto e Puerpério da Febrasgo aposta em mais treinamento para os médicos. “O obstetra que fica inseguro frente a assistência ao parto acaba, muitas vezes, realizando uma cesárea porque se sente mais protegido e no controle da situação”, explica. Ele também afirma que é necessário promover uma conscientização das mulheres durante o pré-natal. “Apontando os riscos associados a uma cesárea desnecessária”, enfatiza Tedesco.

Além disso, ele chama atenção para a necessidade de proporcionar espaço para assistência ao parto normal. “Bem como ofertar para as mulheres possibilidade de controle da dor do parto, seja por técnicas não farmacológicas ou por técnicas farmacológicas. Muitas mulheres optam pela cesárea porque têm medo da dor do parto”, argumenta Tedesco.

Maternidade é exemplo positivo

Na contramão da tendência apresentada em Goiás, na Maternidade Nascer Cidadão, na Região Noroeste de Goiânia, a maioria dos partos é normal. “Fazemos de 10 a 12 partos por dia, sendo que 70% são partos normais”, diz Rogério Cândido Rocha, diretor técnico da unidade pública. Na capital, o pré-natal é feito pela rede de Atenção Primária. Porém, a maternidade atende todas as mulheres que chegam ao local em trabalho de parto.

Rocha explica que a Nascer Cidadão tem estrutura física preparada para os partos normais. São duas salas de cirurgia e seis salas de parto chamadas de salas PPP (pré-parto, parto e pós-parto). “Significa que a mulher vai entrar em trabalho de parto, ter o bebê e permanecer durante o pós-parto no mesmo local. Só depois ela vai para o apartamento.”

O diretor técnico conta que todas as equipes da unidade são engajadas em apoiar as mulheres durante o processo do parto do normal. “Desde os médicos, até as equipes de limpeza. Trabalhamos o reforço positivo. Falamos para elas que tudo vai dar certo, que elas vão conseguir”, enfatiza. O local conta com o trabalho de uma equipe multidisciplinar, que inclui assistência social, psicologia, enfermagem obstétrica, nutrição e até um banco de leite humano.

“Desde que elas passam pela porta, chamamos todas pelo nome. Não existe isso de chamar de ‘mãezinha’ ou ‘paciente do leito 10’. Tentamos promover um ambiente acolhedor. A ideia é ter a mulher no centro de tudo, tomando as decisões. Também reforçamos que ela pode ter um acompanhante durante todo o processo. Isso traz segurança”, revela Rocha.

Experiência

A vendedora atacadista Thalita Soares, de 22 anos, é uma das mulheres que foram atendidas na unidade. Moradora do Jardim Primavera, ela deu entrada na Nascer Cidadão no dia 17 de outubro para dar à luz ao pequeno Miguel. No dia seguinte, ele nasceu. Ela, que já é mãe da Emanuelly, de 4 anos, conta que desde o início sabia que queria um parto normal por causa da experiência positiva que teve no nascimento da primeira filha, que também nasceu por esta via de parto.

Ela relata que o parto não foi fácil, pois estava cansada. A bolsa dela rompeu às 22 horas do dia 17. Entretanto, o bebê só nasceu por volta das 19 horas do dia seguinte. O parto começou a ser induzido às 11h30 daquele dia. Por conta da dor intensa, ela chegou a pedir por uma cesariana, mas a evolução do parto não permitia mais essa via de parto. “Então, tentei mais um tempo e consegui. Não me arrependo de ter tido parto normal. Minha recuperação está ótima. Não tenho do que reclamar”, alegra-se.

Benefícios

O diretor técnico da maternidade chama a atenção para o fato de que em países como a Inglaterra, onde a proporção de cesarianas é baixa, o obstetra sai de cena como ator principal do parto. “Quem acompanha é a enfermeira obstétrica. Isso é bom. O médico é chamado só na intercorrência”, explica Rocha, que também destaca os benefícios de um parto normal para o bebê. “Só da mulher estar em trabalho de parto, as contrações estimulam o bebê a produzir cortisol (um tipo de hormônio). Isso faz com que ele nasça em melhores condições para amamentar e respirar.”

Para as mães, o parto normal também é positivo. “Uma mulher que faz um parto normal perde de 250 a 500 mililitros (ml) de sangue. A perda sanguínea média da cesárea é de um litro. Além dos riscos da cirurgia da cesariana, o tempo de convalescença também é maior. Em relação a produção de leite, a que tem um parto normal já tem o colostro. Na cesariana, demora de dois a três dias para ele descer. Isso acontece por conta da ocitocina (um tipo de hormônio) envolvida no processo”, esclarece Rocha.

Além disso, ele aponta os benefícios de um parto normal em detrimento de uma cesárea ligados aos fatores psicológicos. “Percebemos que quanto mais cesarianas, temos mais casos de depressão puerperal. O trabalho de parto estimula justamente a ocitocina. De uma maneira geral, as complicações são menores durante um parto normal”, finaliza o diretor técnico da Nascer Cidadão.

Por Mariana Carneiro
Foto: Reprodução
Jornalismo Portal Panorama
panorama.not.br

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