Maria do Rosário participou de uma reportagem do O POPULAR em 2021 quando foi abordado que as filas em buscas de comida dobraram em Goiânia. Na época, ela disse “a gente se vira com o que tem" (Foto: Wesley Costa / O Popular)

Pesquisa nacional com dados por estado revela que 11,9% dos domicílios de Goiás não têm a garantia das refeições no dia a dia.

Aproximadamente 858 mil pessoas que moram em Goiás estão passando fome, ou seja, não comem por falta de dinheiro para comprar alimentos, fazem apenas uma refeição por dia ou ficam o dia inteiro sem comer. O número representa 11,9% dos domicílios do Estado, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan), que divulga nesta quarta-feira (14) os dados estaduais da pesquisa cuja coleta ocorreu entre novembro de 2021 e abril deste ano. São casas em que há insegurança alimentar grave.

Além disso, outros 901 mil moradores do estado foram descritos como com insegurança alimentar moderada, o que significa dizer a existência de uma redução quantitativa de alimentos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante de falta de alimentos. Pesquisador e membro da coordenação executiva da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), o sociólogo Renato Carvalheira explica que essa categoria demonstra uma perda na qualidade e na quantidade de alimento.

“São pessoas que tiveram de trocar alguns alimentos, como não comer mais frutas e legumes, e ainda não faz todas as refeições. Já a insegurança alimentar grave é quem não tem o que comer mesmo, o que demonstra, na nossa sociedade capitalista, a falta de dinheiro”, diz Carvalheira. A pesquisa demonstra ainda a estimativa de que há 2,19 milhões de pessoas em Goiás com insegurança alimentar leve, em que há perda qualitativa na alimentação, mas não há ausência de alimentos. São famílias em que, por exemplo, não há mais o consumo de carne vermelha por falta de recursos financeiros para comprar.

A Vigisan teve a sua primeira etapa publicada em junho deste ano, apenas com dados nacionais e das grandes regiões, e revelou a existência de 33 milhões de brasileiros em situação de fome diária. Ou seja, 2,59% deste total moram em Goiás. Para se ter uma ideia, no geral, os 7,2 milhões de goianos representam 3,34% da população brasileira (estimada em 215 milhões). A relação comprova, desta maneira, que estatisticamente Goiás possui uma média melhor do que a nacional em relação a pessoas com segurança alimentar. No estado, 45,2% dos domicílios comem diariamente e possuem recursos suficientes para comprar o que necessitam.

Em todo o Brasil, o índice é de 41,3% dos lares com essa situação favorável. Além de Goiás, apenas outros nove estados estão acima da taxa nacional, sendo que sete deles estão situados nas regiões Sul e Sudeste. No Nordeste a situação só ocorre no Rio Grande do Norte (51,2%) e no Norte em Rondônia (46,9%). Para Carvalheira, apesar de índice melhor, a situação de Goiás não é de grande diferença. “É um estado produtor de alimentos, tem setor forte no agronegócio, que sempre emprega bastante pessoas, então tem essa característica. É preciso analisar as ações dos governos estaduais, porque houve desmonte de programas federais, como o de aquisição de alimentos, e o não uso da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), que prejudicou muito os estados”, afirma o pesquisador.

Ele reflete ainda que outras pesquisas que foram feitas para avaliar a situação da fome no Brasil ao longo dos anos verificaram uma piora nos índices a partir de 2013 e 2014. “Isso ocorreu em todos os estados, inclusive em Goiás. Claro que houve a pandemia de Covid-19, mas o que percebemos é que as consequências são de aceleração desse processo. Isso se dá por esse desmonte das políticas públicas, como a queda dos investimentos na agricultura familiar, a falta de estoques públicos da Conab, que poderia ter segurado a inflação, por exemplo.”

Os dados mostram ainda que a fome tem gênero e cor, já que os lares chefiados por mulheres têm proporcionalmente maior ocorrência da insegurança alimentar grave, assim como aqueles chefiados por pretos. Isso também ocorre nos domicílios com crianças e com chefes sem escolaridade. Em Goiás, por exemplo, nas casas cujo chefe não estudou ou estudou menos de 8 anos, o índice chega a 16,4%, e naqueles com crianças menores de 10 anos é de 35%.

Drama atinge até quem tem renda

Apesar de a fome ser normalmente associada à população em situação de rua, o problema não tem uma única cara, conforme demonstram os dados do Cadastro Único (CadÚnico). A falta de alimentos atinge mesmo aqueles que contam com uma renda mensal. Uma das entidades mais tradicionais na distribuição de alimentos, a Associação Tio Cleobaldo tem quase 5 mil famílias cadastradas para o recebimento de cestas básicas. De acordo com Maylla Rigonato, a assistente social da instituição, entre os inscritos estão pessoas com diversos perfis sociais, alcançando até mesmo algumas que têm casas em endereços nobres.

“Durante o trabalho de distribuição de alimentos, escuto cada história que choca. Tem muita gente que tem casa, mas que está enfrentando a fome por falta de um fogão, por falta de gás”, conta Maylla.

A assistente social detalha que atende pessoas em bairros como o Setor Bueno, um dos bairros mais nobres da capital. “São pessoas que deixaram de ter comida por algum motivo. Seguem em suas casas, mas não conseguem fazer uma compra básica”, afirma.

Entre as histórias está a da manicure Marciane Marilene, de 32 anos. Ela conta que as dificuldades foram acentuadas após se tornar mãe. Moradora do Setor Norberto Teixeira, em Aparecida de Goiânia, ela vive com quatro filhos e com o pai.

A renda da casa está vindo do Auxílio Brasil e de bicos que faz como manicure. Mas as contas não ficam nem próximas do valor total que conseguem juntar. Faltam mantimentos e gás de cozinha. “A opção é cozinhar na lenha, o que tem sido muito difícil nesse calor”, relata.

Embora siga enfrentando a escassez de alimentos, a manicure conta que a situação já foi ainda pior. “Há alguns anos, cheguei a realmente passar fome. Teve uma noite que eu pedi uma sacola de pão no mercado e só tinha cinco. Dei para eles (os filhos) comerem o pão com água e eu fiquei sem. É ruim demais”, conta Marciane. Ela detalha que ainda mantém outras estratégias: “Já saí para pegar goiaba, caju. Sempre buscando formas de não deixar os meus filhos passarem fome. É difícil. Necessidade não deveria existir, mas infelizmente existe”.

A líder da Ocupação Estrela Dalva, Cinthia Nicassia, também ajuda a montar o perfil daqueles que sentem fome. A ocupação urbana em que vive foi iniciada no ano passado e recebeu diversas pessoas que até o início da pandemia tinham um endereço convencional. “Essas pessoas, que tinham emprego e conseguiam se manter, hoje não conseguem trabalhar e vivem a partir de doações”, conta a representante. Segundo ela, diariamente famílias a procuram para relatar a falta de alimentos.

“Sem a doação de cestas não sei como estariam sobrevivendo. Mas essas cestas não conseguem atender a todos. O que fazemos é priorizar as famílias que têm mais crianças ou alguma necessidade especial”, detalha Cinthia. Em momentos de maiores dificuldades, os vizinhos se ajudam. “Um vizinho faz a comida e, vendo que o outro não tem, vai lá e faz um prato. Tem sido assim”, diz.

A auxiliar de serviços gerais Cláudia Francisco de Carvalho, de 36 anos, é mãe de seis filhos e mora no Virgínia Parque, em Aparecida de Goiânia. O salário jamais foi suficiente para pagar todas as contas e conseguir alimentação. Na última gravidez, passou fome e chegou a se alimentar de água com açúcar. Nos últimos meses encontrou uma saída que tem mantido o sustento dos filhos. “No meu trabalho servem almoço para os funcionários e me autorizaram a levar comida para casa”, diz.

“Antes disso eu corria atrás de cestas básicas. Colocava no grupo de Whatsapp do bairro, perguntando se alguém tinha um arroz para doar”, relembra a auxiliar de serviços gerais.

Doações

O portal mostrou em julho deste ano que as doações de mantimentos, que foram numerosas durante parte da pandemia de Covid-19, estão chegando cada vez em menor volume. Como exemplo, a assistente social Maylla diz que das 4,8 mil famílias cadastradas na Associação Tio Cleobaldo, menos da metade tem conseguido ser atendida de forma regular em razão da pouca quantidade de doações.

O cantor e compositor goiano Xexéu, que tem um projeto independente de distribuição de cestas, também relatou ao POPULAR a redução das doações. “As doações caíram muito, isso é um aceno de que quem doava também não está podendo tanto. Isso é um fenômeno mundial, mas principalmente nacional”, avalia o músico.

No dia a dia de entregas de cestas, o grupo de Xexéu encontra retratos da fome na capital. “Geladeiras vazias. Fogões improvisados com tijolos e lenha”, relata.

Fonte: O Popular
Foto: Wesley Costa / O Popular
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